(Neste mais uma versão da ” Guerra da Palmatória” em Orleans.)
Quarta Parte
Agora com quatorze aninhos de vida, achei que não teria futuro na vida grudado no cabo da enxada de sol a sol, portanto resolvi procurar aprender a profissão de marceneiro. Assim um dia fui a Orleans à procura do excelente marceneiro Guilherme Feldmann, mas ele me disse que não era possível, pois já tinha três meninos enchendo o saco dele todos os dias.
Na volta de Orleans passei na oficina de ferreiro do Sr. Artur Paegle e perguntei se ele poderia me ensinar a malhar o ferro. Respondeu que ia pensar. Passado algum tempo, voltou perguntando se ainda queria aprender a profissão. Respondi que sim. Então ele me propôs dar a pensão, cama e mesa — banho não precisaria pois água tinha bastante no rio. Só que teria trabalhar dois anos sem salário, isto é, de graça — ou melhor, em troca dos ensinos dos segredos da profissão, como era praxe naqueles tempos. Claro que aceitei.
Apesar de não ser tão perto, todo sábado eu ia para casa.
Um dia, nessa viagem para casa, parti um pouco mais tarde do que costumava fazer. O sol já havia descido e começava a escurecer quando cheguei a um lugar onde o Eduardo Karklin tinha plantado milho. Na beira da estrada ele tinha deixado de derrubar uma árvore enorme. Quando eu já ia passando por baixo dela vi uma macacada em seus galhos, e já corria aquela história dos bichos.
Eu sempre levava uma garrucha escondida na cintura; vendo aquela macacada nos galhos, tirei a garrucha e quis atirar, mas lembrei que macaco tem o rosto parecido com o da gente. Guardei a garrucha e só bati palmas.
Ai meu Deus! Meus cabelos ficaram de pé. Aquela bicharada caía como se fossem novelos de algodão, até na estrada dura e quase em cima de mim (por azar dias antes eu tinha lido histórias sobre bichos na África). Fiquei duro, pois nem da garrucha não me lembrei.
Quando me recuperei do susto não vi mais bicho nenhum. Só ai é que voltei a lembrar da arma, e para meu consolo tirei da cintura e dei um tiro em direção do mato.
Na verdade não eram macacos e sim quatis. Dizem que os quatis quando se assustam pulam dos galhos para escapulir. Correm de pé, isto é, nas patas traseiras.
Mal eu tinha começado o meu aprendizado minha mamãe vendeu o sítio e foi para São Paulo. Fiquei só eu para continuar aprendendo a profissão.
Vencido o primeiro ano, um belo dia informei ao meu patrão:
— Quero ir para São Paulo. O senhor vai me deixar ir?
Ele resmungou em alemão mas não disse nada. Uns dias mais tarde ele me chamou junto a sua escrivaninha e disse:
— Você não vai para São Paulo, de hoje em diante vai ganhar dois mil réis por dia — o que naquela época era uma ótima proposta.
Aguentei mais três meses, mas um dia eu disse:
— Quero ir embora para São Paulo sim. Isto é, se o senhor me dispensar.
Ele não respondeu, mas após alguns dias me chamou e disse:
— Já que queres ir, então vá.
Me deu uma camisa de presente e uns cinquenta mil réis e me dispensou. Já no dia seguinte fui a Laguna comprar a passagem para ir de navio para Santos, porque naqueles tempos era o único meio de se ir para São Paulo.
O seguinte acontecimento eu deveria ser contado antes do período de nossa ida à escola, mas por um lapso e esquecimento deixei de contar o que faço agora:
Certo dia correu a notícia de que os gaúchos tinham se revoltado e iam descer a serra. O delegado, sabendo que os gaúchos vinham, mandou uns soldadinhos esperá-los na boca da serra, mas os gaúchos quando souberam se dispersaram.
Não demorou muito veio outra notícia: os gaúchos já tinham descido a serra e vinham trazendo junto todos homens adultos, cavalos, vacas, porcos e mantimentos para alimentar a tropa. Nos tínhamos um cavalo e uma vaca e bastante porquinhos. Os porcos nós soltamos do chiqueiro, o cavalo e a vaca levamos para a mata virgem, onde os amarramos e onde também viemos a pernoitar. Deste pernoite nasceu uma frase no meu “Poema do Centenário”:
Pousar nesta densa mata, a noite era escura e sombria
Só vaga-lumes como estrelas errantes se viam
Grilos, rãs e sapos por todo lado gemiam
Parecia uma novela de terror que exibiam
Como o meu irmão Carlos já era adulto teve que ir junto com a tropa de revolucionários. Ele pegou a sua espingardinha pica-pau e foi.
Pernoitaram numa várzea, e ao amanhecer o dia resolveram marchar sobre Orleans, mas logo foram barrados por meia dúzia de soldadinhos do delegado. Um deles disparou um tiro pro ar e os valentes revolucionários se dispersaram como se fossem ratos.
Foi um salve-se quem puder. Só alguns trouxas, pensando que não tinham nada com a revolução, foram presos e levados para Orleans. Entre eles estavam o Jacob Karklis e o Vitorio Maisin, sendo que cada um levou vinte e quatro palmatórias em cada mão. Voltaram todo machucados, a revolução acabou sem graça e só os inocentes e os covardes apanharam.
Agora, voltando a falar da minha despedida do Rio Novo: ao chegar na agência do porto em Laguna, falei ao chefe do porto:
— Quero uma passagem para Santos — mas como eu ainda falava mal o português, ele me perguntou qual era a minha nacionalidade. Respondi que era leto.
— Leto — disse ele. — Mas como que aqui no documento diz que seus pais são da Rússia?
Respondi que os russos tinham invadido a Latvia/Letônia.
— Certo, mas onde você nasceu?
— Em Araranguá — respondi eu.
Surpreso, perguntou-me:
— Ué, na Rússia também tem Araranguá?
Então respondi que não era na Rússia e sim logo adiante de Criciúma. Pobre de mim. O homem virou uma fera. Berrou ele que esse negócio de russo, alemão e italiano, que isto tinha que acabar.
— Você fica sabendo quem manda no Brasil é brasileiro, viu? Você nunca mais me diga que é isso aí que você falou, entendeu?
— Sim, senhor! Sim, senhor!
Passada a fúria ele preencheu a passagem e me deu com um sorriso amarelo. Como o navio ia demorar cinco dias para chegar, voltei para a casa do meu cunhado e irmã Alvina.
Na véspera da minha partida tive uma agradável surpresa: veio uma turminha da gentil mocidade dizer adeus. Cada um com seu bolinho e seu docinho, e minha irmã deu café com leite. Comeram, beberam, cantaram e por fim desejaram boa viagem e breve regresso.
Entre esta turminha havia uma donzelita com a qual eu tinha brincado desde criança. Parecia um amorsinho infantil, mas agora já tinha mudado muito, eu com dezesseis anos e ela com treze.
Ao se despedir ela perguntou:
— Volta logo?
Aí eu respondi:
— Quem sabe — e convidei: — Vamos juntos?
Ela respondeu com os olhos rasos de lágrimas:
— Agora não, mas se você quiser um dia irei sim!
Sabe, diante desta situação fiquei com uma vontade de não ir mais para São Paulo.
Após todos terem ido embora, já no silêncio da noite, me ajoelhei e pedi ao Senhor que me desse uma boa viagem e que me concedesse a graça de viver todos os dias no temor do seu Santo Nome. Lembrei daquela donzelita que ficou chorando.
Se ela for a minha eleita faça-me voltar para buscá-la. E se minha eleita conforme a sua vontade estiver em São Paulo, então que seja a primeira que eu por lá encontrar. Não importa que seja feinha ou bonitinha, de gente abastada ou pobrezinha. Só peço duas coisas: primeiro que tenha o verdadeiro temor pelo seu Santo Nome. e segundo que realmente goste de mim — sendo assim, terei absoluta certeza de uma vida muito feliz.
Agora, já no dia seguinte bem cedo, fui a Orleans a fim pegar o trem para ir a cidade de Laguna, onde era o porto — lá onde ao comprar a passagem do navio tinha levado aquela tremenda bronca já contada nas páginas anteriores.
À noite, já a bordo do navio, começou a viagem que durou duas noites e dois dias, para chegar as nove horas da noite na cidade de Limeira, em São Paulo.
Pernoitei, e no dia seguinte saí à procura de um posto de gasolina onde o Guilherme Slengmann, que era proprietário de um caminhão, talvez fosse conhecido. Ele era amigo meu.
Tive sucesso logo no primeiro posto onde indaguei, ele era conhecido por ser freguês. Então perguntei se o homem do posto sabia onde ficava a [fazenda] Boa Vista e ele realmente sabia. Orientou-me a apanhar o trem das nove horas e voltar até a primeira estação, de onde ainda distava mais quatro quilômetros. De lá seria mais fácil conseguir as informações que faltavam para conseguir a localização do meu destino final.
Após seguir essas instruções, foi fácil chegar próximo à tal fazenda. Neste instante saìa de um terreiro um comprador de frangos e quando perguntei se ele conhecia muita gente por aqui, ele respondeu que sim. Então perguntei se ele conhecia o tal Guilherme Slengmann. Ele respondeu que não.
— De todas pessoas que eu conheço nenhuma se chama Guilherme.
Aí contei que eu tinha um irmão o Carlos que trabalhava com o Guilherme e esse Carlos era muito conhecido e muito prosa.
Aí o frangueiro perguntou se ele era gordo. Respondi que era só um pouco corpulento. Aí ele perguntou se era russo. Respondi que sim e expliquei que assim os letos eram chamados. Então ele disse:
— Sim, deve ser o seu irmão, monta aqui na carroça, pois eu vou te levar até bem perto.
Em certo momento ele parou e mandou seguir até uma cerca e depois virar à esquerda; era lá que morava um russo que deveria ser a pessoa que eu estava procurando.
Chegando à dita casa bati palmas e os cachorros começaram a latir. Logo alguém abriu uma janela e apareceu uma linda donzelita. Logo surgiu o pai dela, ao qual pedi a informação. Quando ele chamou a mocinha “Melania natz schurp” [Melania, vem cá] logo percebi que eram letos.
Perguntei em leto se sabiam onde morava o Carlos Zanerip. Aí ele perguntou de onde eu tinha vindo. Respondi que tinha vindo do Rio Novo, Santa Catarina. Então ele disse:
— Entra e descansa, e conta como vai a nossa gente por lá. Lá mora um irmão meu que é pai do Artur Purim (cujo nome eu tenho esquecido).
Entrei e a donzelita fez um saboroso lanche. Foi neste momento, quando ela trazia, lembrei do meu pedido ao Senhor. Pois eu não tinha visto ninguém, nem mesmo o pai dela, no momento que ela surgiu na janela.
E quando voltei à fazenda fiquei estupefato. Lá de onde eu havia abordado o frangueiro, a menos de duzentos metros, vivia meu irmão Carlos. Alguns metros adiante morava o Guilherme Slengmann, e logo no outro lado do córrego vivia o Guilherme Och. Mais adiante morava o Guilherme Ivercen, todos bem conhecidos do frangueiro — que tinha esquecido de todos para levar-me a conhecer primeiro a linda senhorita Melania Purim.
Apesar de tanta evidência, nossos caminhos não se cruzaram. Só atrapalhou minha vida por longos anos. Talvez tenha sido porque não cheguei a contar isto a ela, por muito respeito que a ela eu dedicava. Não contei por receio de ser mal interpretado ou incompreendido.
Isto foi em 1931, e só contei a ela num Congresso Leto em Nova Odessa em 1978 apenas — só para arrancar um sorriso de dois velhinhos que esperavam a longa noite chegar.
Porque o Senhor já disse: “Os meus caminhos não são os vossos caminhos, os meus pensamentos não os vossos pensamentos” e também a minha escolha era outra. Deus também diz que bem-aventurada é a nação cujo Deus é o Senhor, e Deus de um lar também.
* * *
[continua…]