Uma linda descrição de Urubici e seu povo. Por Paulo Roberto Purim

Horizonte perdido


Foto: Ramperto

Paulo Brabo, 28 de maio de 2014

SONDRA. Ah, como eu queria que o mundo inteiro viesse para este vale!
CONWAY. Se acontecesse ele não permaneceria um jardim tranquilo por muito tempo.
Os protagonistas de Horizonte Perdido (1937), de Frank Capra, falando sobre Shangri-Lá

Uma pessoa singular nos pode revo­lu­ci­o­nar a vida, mas essa em geral é uma transação que leva tempo. Uma comu­ni­dade singular – o encontro com uma cultura e com uma solução de convívio dife­ren­tes das que conhe­ce­mos – tem potencial para nos derrubar e desarmar imediatamente.

É por isso que a lite­ra­tura e a expe­ri­ên­cia recorrem com tanta frequên­cia à metáfora do des­lo­ca­mento como ilu­mi­na­ção, e que o traçado do nosso cres­ci­mento interior pode muitas vezes ser desenhado a partir dos nossos relatos de viagem. Em parte saímos de onde estamos porque decidimos final­mente crescer, em parte crescemos porque final­mente saímos de onde estamos.

Grandes viajantes como Joseph Conrad, Jorge Luis Borges e Richard Francis Burton encon­tra­ram no trato com diversas culturas as fer­ra­men­tas de empatia e de lucidez que se refletem em sua produção literária. Os profetas de Israel só foram aprender a compaixão no exílio, longe de casa, e no exílio intuíram que se Deus era para ser realmente grande não podia ser tribal como eles vinham acre­di­tando: um Deus grande tinha de ser universal, e uni­ver­sal­mente pre­o­cu­pado com a justiça social.

Viajar coloca em grande risco a rigidez da alma. Não é de admirar que, num mundo em que a expe­ri­ên­cia de deslocar-​​se poderia ser muito mais frequente e factível do que jamais foi, con­ti­nu­e­mos a inventar arti­fí­cios técnicos e legais que difi­cul­tem a expe­ri­ên­cia para todos. Não é de admirar que recebam permissão para deslocar-​​se com maior frequên­cia pelo mundo somente aqueles que foram treinados para não se deixar iluminar pela expe­ri­ên­cia: militares e capitalistas.

Nada destelha a alma de modo mais radical, nada recalibra mais irre­ver­si­vel­mente o nosso giros­có­pio interior, do que sermos sub­me­ti­dos a um lugar em que a matéria-​​prima mais familiar e mais barata de todas, o ingre­di­ente do ser humano, gerou como produto final uma cultura e uma comu­ni­dade dife­ren­tes daquelas a que estamos habituados.

Encontrar gente que vive de modo diferente tem o potencial de nos revelar, pela dádiva da pers­pec­tiva, o que até aquele momento per­ma­ne­cia oculto sobre o nosso mundo e sobre nós mesmos. A pers­pec­tiva cultural pode revelar a gente calejada o quanto o ser humano é maleável, e em alguns casos nos dará de volta o sonho de sermos maleáveis nós mesmos.

Quando cami­nha­mos, o horizonte perdido pode em alguns casos ser recuperado.

Urubici: uma vida legítima

Ao longo da vida creio ter tido quatro grandes epifanias antro­po­ló­gi­cas, encontros equa­li­za­do­res com soci­e­da­des em que o ingre­di­ente familiar do homem encontrou modo de fabricar uma vida fora do comum – uma vida além e acima do que eu tomava não só por usual, mas do que tomava por possível.

A primeira dessas expe­ri­ên­cias aconteceu quando eu tinha oito ou nove anos, e meu pai levou-​​nos para passar as férias em Urubici, na serra cata­ri­nense. Apa­ren­te­mente eu, minha mãe e minhas duas irmãs deixamos claro o nosso desagrado diante da ideia de des­per­di­çar o tesouro das férias num lugar que àquela altura não nos dizia nada, ainda mais que nos cabia a tarefa maçante de visitar (e, como acabou acon­te­cendo, ficar na casa de) gente que só o meu pai conhecia.

Naqueles dias eu ainda era capaz de me enganar, porque ficou provado que eu estava muito errado tentando me manter longe de Urubici e dos amigos do meu pai. Ao longo das décadas fiz na verdade o que pude para corrigir com frequên­cia essa distância.

Santa Catarina é por si só uma província singular, e não só por ter sido (mais do que qualquer outro estado do Brasil) esculpida por levas mais ou menos recentes de imi­gran­tes europeus. Santa Catarina teve sua paisagem rural intei­ra­mente desenhada por pequenas pro­pri­e­da­des em vez de grandes – condição que muda a face de tudo mais do que a mão estran­geira dos colo­ni­za­do­res, e é pelo que sei única no Brasil. E essa cultura par­ti­cu­lar veio emol­du­rada por uma beleza natural intensa, variada e peculiaríssima.

Essas par­ti­cu­la­ri­da­des vinham todas acen­tu­a­das em Urubici, uma cida­de­zi­nha definida por uma reta impos­si­vel­mente longa ladeada por casas de sítio que subiam muito satis­fei­tas em direção a morros relvados crivados de macieiras. Essa rua comprida nascia no centro oficial da cidade, ao sul, e encon­trava per­pen­di­cu­lar­mente no norte, quilô­me­tros de sítios depois, a linha do rio Canoas, patro­ci­na­dor do vale mais bonito e mais fértil que meus olhos já tiveram ocasião de beijar. Essa con­fi­gu­ra­ção geral era inter­rom­pida aqui e ali por outros vales cavados por rios de menor porte, sendo que o efeito era de tirar o fôlego: vales e esquinas de vales, rios e encontros de rios, matas de araucária e matas sub­tro­pi­cais, pastos relu­zen­tes, várzeas férteis cin­ti­lando hortas ver­dís­si­mas, molduras de montanhas e molduras de cascatas, pro­mon­tó­rios de verde e curvas de água cre­pi­tante, pontes pênseis longas e estreitas que vacilavam entre os pés da gente e correntes cris­ta­li­nas, cercas de madeira que abraçavam pomares e jardins, pés-​​de-​​serra meio revelados pelo sol e meio ocultos pela névoa – e, tanto na cidade quanto nos sítios, casas de madeira infun­di­das da beleza, da legi­ti­mi­dade e da per­so­na­li­dade que os sonhos e os contos de fadas reservam para palácios.

Essa paisagem assom­brosa, a meio caminho entre o vale alpino e a vereda tropical, era bela de um modo cru, pene­trante e imediato que eu jamais havia expe­ri­men­tado e jamais voltei a encontrar.

Porém a beleza natural do lugar não foi o que me des­nor­teou em Urubici. Havia as pessoas, meu caro, as pessoas e seus modos de vida, e sobre eles seria neces­sá­rio escrever volumes.

Chegando a Urubici ficamos no Hotel Andermann, onde dormimos sobre assoalhos de madeira e debaixo de acol­cho­a­dos de pena enormes, brancos e pesa­dís­si­mos, mas no dia seguinte fomos arre­ba­ta­dos dali para a casa de amigos que se tornariam ime­di­a­ta­mente e ao longo dos anos família, a nossa família em Urubici: Seu P., Dona C. e seus filhos.

Como resumir os nossos dias nessa casinha atracada entre macieiras? Meu amigo, a abun­dân­cia de hobbit que expe­ri­men­ta­mos ali. Os pães, os bolos, os biscoitos, o toucinho do céu, as compotas, as tortas de maçã, o mel e a nata, o suco de ameixa vermelha. As refeições, a conversa, as risadas, o pique­ni­que no alto do morro, a paisagem do Avencal, as maçãs do pomar – maçãs que eram tão abun­dan­tes que com elas vi alimentarem-​​se os porcos. Eu, Paulo Brabo, nesta vida e neste universo, derrubei aos porcos mais de uma baciada daquelas maçãs pequenas e ácidas, aquelas que me agradam mais do que todas as outras e que só voltei a encontrar no vale do Serchio décadas depois, porque sim­ples­mente supe­ra­bun­da­vam e a Dona C. não per­mi­ti­ria que se estra­gas­sem e me deu essa incum­bên­cia, e os porcos davam tes­te­mu­nho de apreciá-​​las tanto quanto eu.

Aquela primeira casa do Seu P. e da Dona C. ficava do lado do pasto da casa do Mano, em cujo paiol a moçada vinha jogar pingue-​​pongue depois do culto de domingo à noite, depois de atra­ves­sar a pé o pasto escuro debaixo de um céu imaculado de estrelas. A meio caminho entre a porteira e a casa do Mano o caminho passava entre duas arau­cá­rias enormes, colunas de um templo romano em ruínas ou em cons­tru­ção. Atrás da casa uma muralha de mata e por trás dela uma curva res­plan­de­cente do Canoas, pre­ci­sa­mente onde pesquei o meu primeiro (e único) lambari.

Com exceção do Seu P., que tra­ba­lhava numa oficina de motores na cidade, todos os amigos do meu pai que fomos conhe­cendo viviam na roça e da roça. Havia o caro Z., sua esposa Dona I. e seus três filhos, custódios da curva mais bela do mais belo dos rios que me atra­ves­sam a vida. Na varanda atrás da casa do Z. aguardava uma maravilha da graça e da enge­nha­ria: um tanque que se elevava do chão até a altura dos quadris e vivia cheio da água mais pura, sendo ali­men­tado sem pausa – dia e noite aquela emba­ra­çosa dádiva – pela água que descia do morro vizinho por um aqueduto suspenso feito de meias taquaras. Em 2009, quando fui a Urubici pela última vez, o tanque ainda estava lá, e o mesmo Z. lavou naquela água alguns pêssegos antes de estendê-​​los na minha direção.

Havia o Seu G. e a Dona M., que moravam mais longe da cidade e num lugar mais elevado. Três porteiras depois da estrada principal um retângulo de cerca se elevava da relva, a cerca abraçava um jardim e o jardim abraçava a casa de madeira de G. e M.

Naquela casa comi o melhor almoço da minha vida (temos até uma foto em algum lugar, preciso lembrar de rastreá-​​la), nós cinco e a família de G. e M. dispostos ao longo de uma mesa intei­ra­mente tomada de ofertas culi­ná­rias, as paredes ao nosso redor repletas de pra­te­lei­ras, as pra­te­lei­ras repletas de compotas.

Atrás da casa o morro con­ti­nu­ava a subir gen­til­mente e lá do alto, quando a elevação final­mente dava lugar à descida da roça, descortinava-​​se a mais cine­ma­to­grá­fica vista do vale: as osci­la­ções gentis dos con­tra­for­tes do morro no lado oposto, e lá embaixo o rio e a guarnição larga e plana de sua várzea fértil, intei­ra­mente pontuada de plan­ta­ções e pequenas propriedades.

Aquele foi o meu primeiro contato com gente da roça, e minha impressão não poderia ter sido mais vívida e duradoura. Eu não saberia articular isso desse modo naquele tempo e quase não consigo fazê-​​lo agora, mas naquelas pessoas havia de um lado uma dureza e de outro uma doçura e uma gentileza que eu jamais ima­gi­na­ria serem capazes de viver juntas em meros mortais. Se me tivessem dito esses são os seres humanos originais, aqueles que você conheceu até agora são cópias fun­ci­o­nais, eu não encon­tra­ria como contra-​​argumentar.

Todas as pessoas que conhe­ce­mos em Urubici (essas que mencionei e tantas outras; outros cafés em casas de fazenda e outros jantares na cidade) tinham algumas coisas em comum. Primeiro, eram todos des­cen­den­tes de imi­gran­tes da Letônia. Muitos deles, como meu pai, tinham subido a serra em busca do clima mais ameno de Urubici (910 metros de altitude e cercada por morros muito mais altos) para escapar do calor da Colônia Leta do Rio Novo, no município de Orleans (130 metros de altitude e tre­men­da­mente quente).

Eram ainda todos amigos entre si, tendo a relação inter­me­di­ada pela religião batista e pela etnia. E, ainda mais extra­or­di­ná­rio, eram todos amigos do meu pai, que com dezoito anos de idade tinha se mudado de Rio Novo para Urubici, onde foi aprendiz de mecânico por algum tempo antes de tentar (e de conseguir) a vida em Curitiba. Ver tanta gente singular tratando meu pai como amigo inter­pre­tei como um claro e ines­pe­rado brasão nobi­liár­quico. E eu que até aquele momento acre­di­tava que ele era um cara comum: meu pai fazia secre­ta­mente parte da nobreza e só fui descobrir entre seus amigos em Urubici.

Da pers­pec­tiva dos anos não encontro nada que condenar na minha admiração pelos modos de vida que encontrei no vale do Canoas e seus pro­ta­go­nis­tas. Ao contrário: eram pessoas vivendo uma solução de convívio extra­or­di­ná­ria num lugar extra­or­di­ná­rio – e, claro, achavam que tudo aquilo era muito comum.

Não creio ter entendido isso de modo completo naqueles dias, mas os nossos amigos de Urubici me trans­mi­ti­ram uma impressão de selvagem inde­pen­dên­cia. Eram gentis e generosos, mas ao mesmo tempo impla­cá­veis. Seu aperto de mão informava que não podiam ser domados.

Em retros­pecto, é muito com­pre­en­sí­vel que se sentissem inde­pen­den­tes. Tanto na cidade quanto no sítio, os uru­bi­ci­en­ses àquela altura dependiam pouco do mundo exterior. Um ou outro tinha televisão (creio que, naquela primeira viagem, nenhum) e telefone. Em suas casas o que vinha de fora eram coisas como uten­sí­lios, fer­ra­men­tas, lâmpadas, livros, remédios, algumas roupas e em casos extremos uma geladeira. Todo o resto era provido por eles mesmos ou por pro­du­to­res locais.

O pão que se comia era o que se fazia em casa, e o mesmo valia para doces, geleias, compotas, sucos, biscoitos, tortas e bolos, manteiga e nata. O mel, o leite, a carne e os ovos eram pro­du­zi­dos para consumo doméstico ou tra­fi­ca­dos entre vizinhos. A mesma regra – consumo local da produção local – valia para verduras, frutas e hor­ta­li­ças. O pessoal do sítio tra­ba­lhava duro na roça não para ter o que comer, mas para com a venda da produção ganhar o dinheiro que comprasse o que não se podia produzir local­mente. Viviam no século vinte com a inte­gri­dade de colonos de um filme de faroeste.

Não tenho como condenar o Brabo de nove anos de idade por concluir que caminhava entre semi­deu­ses. Aquele modo de vida vinha imbuído de uma legi­ti­mi­dade vital que não vi replicada no sertão do nordeste, na Itália ou na Austrália, embora tenham esses lugares cada um a seu modo con­tri­buído para arruinar o meu cinismo essencial.

Às vezes suspeito que meu pai levou-​​nos a Urubici naquela ocasião para que pudés­se­mos admirar devi­da­mente a façanha que foi ele ter con­se­guido sair daquele lugar: algo tipo vejam de onde eu saí e olhem onde eu cheguei. Meu pai, a própria imagem do self-​​made man, é muito capaz de ter pensado nisso.

Se era essa a sua intenção, no que me diz respeito o tiro saiu pela culatra do modo mais for­mi­dá­vel, e ao longo dos anos meu pai foi enten­dendo isso. Incom­pre­en­sí­vel para mim, desde o primeiro instante, era alguém ter escolhido deixar aquele modo de vida para trás. Eu o queria adiante de mim.

Paulo Roberto Purim